Livro imperdível!!!
Se ainda havia dúvida de que o Brasil vive uma era de ouro na tradução literária, tal hesitação cai por terra com a chegada às nossas livrarias de Ele que o Abismo Viu: Epopeia de Gilgámesh. Essa recriação vernácula da primeira de todas as epopeias conhecidas é um prodígio estético e um monumento da língua — proeza realizada por Jacyntho Lins Brandão, professor de grego da Universidade Federal de Minas Gerais e uma das figuras mais relevantes nos estudos clássicos brasileiros. Acadêmico consagrado, que já nada precisava acrescentar ao currículo, Brandão decidiu desviar-se por um tempo da literatura grega e aprender uma língua que até então desconhecia, o acádio — além de entranhar-se em uma vasta bibliografia especializada. Tudo isso para brindar o Brasil com uma tradução que fizesse jus à mãe de todas as histórias. Há algo de heroico — e, por que não, épico — nessa empreitada artística pessoal. Graças a ela, o leitor brasileiro tem à sua disposição uma das versões mais atualizadas e enriquecedoras de A Epopeia de Gilgámesh em qualquer língua.
A história do texto é, em si mesma, uma parábola fascinante sobre os mútuos poderes da memória e do esquecimento na cultura humana. Ao que se sabe, o protagonista da epopeia é inspirado em um personagem histórico: Bilgames ou Gilgámesh, soberano da cidade de Úruk, atual Iraque, que teria vivido no século XXVII a.C. Diversos relatos celebraram as façanhas do rei de Úruk e seu amigo dileto, Enkídu — inicialmente em sumério, depois em acádio. Por volta de 1200 a.C., esse caudal de narrativas foi reunido e concatenado pelo escriba Sin-léqi-unnínni, sobre o qual pouco se conhece.Sua obra foi a primeira na história a ter longa circulação além da terra natal: ainda na Antiguidade, o poema foi traduzido para as línguas hurrita e hitita. Tanto a obra original quanto as reelaborações foram produzidas em caracteres cuneiformes — sistema de escrita em tabuinhas de barro utilizado para representar uma dezena de línguas do antigo Oriente Médio por cerca de três milênios.
Tábua com trecho do poema: resgate épico de um clássico
(Osama Shukir Muhammed Amin/(Glasg)/FRCP)
Essa gigantesca tradição literária ruiu às vésperas da era cristã: por volta do século I a.C., os versos do misterioso escriba desapareceram sem deixar rastros. O poema começou a reemergir apenas em 1846, quando uma cópia fragmentária foi achada nas ruínas de Nínive. Após um hiato de quase 2000 anos, a saga voltou gradualmente a integrar o cânone da poesia. Durante um século e meio, novos estudos e descobertas foram montando, peça a peça, a obra-prima esquecida — que se tornou, simultaneamente, um dos clássicos mais novos e mais antigos da literatura mundial. A tradução de Jacyntho Brandão, aliás, é arqueologicamente impecável, incorporando os avanços científicos mais recentes — entre eles, dois fragmentos achados em 2007 e 2011, na Síria e no Iraque, que ajudam a iluminar alguns dos muitos trechos lacunares do poema.
O título de “clássico” não representa, aqui, mera deferência à antiguidade do texto: as qualidades artísticas deEle que o Abismo Viu o colocam à altura de Homero, Shakespeare e o que de melhor se escreveu em eras menos remotas. Alguns dos grandes temas da arte narrativa já se encontram ali, com impressionante profundidade filosófica e sutileza de estilo — como se a arte da poesia já tivesse saltado pronta dos primórdios da humanidade.Gilgámesh revela-se o arquétipo do herói desmedido, que ousa buscar a imortalidade reservada somente aos deuses; sua aventura acaba em derrota, mas também em sabedoria. A saga envolve divindades soturnas e vingativas, perturbadoras visões do reino dos mortos, duelos entre homens e monstros, a dor da amizade perdida e uma fascinante narrativa do dilúvio universal. A jornada termina com a madura aceitação da finitude humana: “Do homem os dias estão contados, tudo o que ele faça é vento”. É de notar, também, que o mais antigo dos relatos heroicos apresente pelo menos três personagens femininas fortíssimas:
* a prostituta sagrada Shámhat,
* a taberneira Shidúri e
* a implacável deusa Ishtar.
Entre as profusas qualidades da tradução de Jacyntho Brandão, vale destacar a capacidade de transmitir ao leitor moderno a sensação vertiginosa do passado. Por exemplo: Brandão respeita os traços da sintaxe poética do acádio, cuja dicção literária exige a posição dos verbos ao fim das frases. A poética mesopotâmica inclinava-se, também, à repetição de fórmulas e imagens. O tradutor reproduz esse traço, conferindo ao poema um tom de declamação hipnótica. É o caso das primeiras linhas do Proêmio — do qual, aliás, vem o título do livro:
Ele que o abismo viu, o fundamento da terra,
Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
Gilgámesh que o abismo viu, o fundamento da terra,
Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo (…).
Nessas páginas, a estranheza essencial das coisas demasiado antigas convive com os motivos eternos que animam e unificam as literaturas de todos os tempos. Além disso, a tradução conta com um notável aparato de notas e comentários, que abrem ao leitor brasileiro o panorama minucioso de uma vasta civilização literária que o tempo engoliu — para depois, de forma misteriosa e parcial, nos devolver.
Livro:
Título: Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh
Autor: Sin-léqi-unnínni
Tradução de: Jacyntho Lins Brandão
Editora: Autêntica (Belo Horizonte – MG)
Páginas: 336
Data de publicação: 10 de outubro de 2017
Preço de capa: R$ 59,80